domingo, 16 de março de 2008

M E M Ó R I A S v i v a s


Em uma espécie de campo de futebol, sem grama e sem traves, mas sim coberto de cinzas e entulhos, não existe vida. No céu branco borrado por manchas acinzentadas vôam urubus e outras aves tenebrosas não identificadas à distância. Em direção ao horizonte, a quilômetros, pode-se enxergar árvores ainda verdes, talvez a única coisa que dá cor à paisagem local.
Um menino surge em meio aos escombros, a roupa suja e rasgada, a pele empoeirada, os pés machucados, assim podia-se descrever aquela pobre criatura, sozinha e perdida.
Quando abriu os olhos, avistou o céu branco e sua vista doeu. Não sabia onde estava e tampouco quem era.
Levantou-se e caminhou para fora das ruínas, no chão havia cinzas, a sola dos pés estava negra.
- Faço parte de um pesadelo! – Sussurrou para si.
Deu voltas sem sair do lugar, viu as árvores verdes e pôs-se a correr. Os punhos e os pés doíam, mas ele corria com uma força inigualável.
Abaixo de uma das árvores, viu uma menina, diria até uma moça, pois tinha o rosto da juventude.


Lívia, uma mulher já com seus 21 anos, morava com seus pais, mas não via à hora de poder ter sua própria casa. Vivia pelos cantos com seus olhos tristes e castanhos. Se tinha amigos, já não lembrava. Se tinha amor, transformou-se em angústia..
Dedicava-se somente pelas poesias frias e lastimáveis que escrevia. Mas sabia utilizar as palavras como ninguém!
Num fim de tarde, à espera de sua hora preferida, saiu de sua casa descendo a rua até o final. Virou à direita onde havia uma praça, pobre praça com um banco quebrado e algumas árvores. Sentou-se por ali, encostando-se no tronco levemente úmido. O dia amanhecera frio, já era quase seis horas e a noite estava por chegar, sua hora preferida! De saia preta até os joelhos e blusa de lã da mesma cor, não ligava para o frio, pois gostava de sentir o vento gélido e cortante alisar sua pele. Morando em um país tropical, não é sempre que se pode sentir isso. Aproveitava e muito quando esfriava. Prendeu o cabelo negro que caía até os ombros, contrastando sua franja arredondada com o rosto branquinho e os lábios vermelhos por causa do frio.
Seus olhos melancólicos miraram o horizonte, onde se podia lastimar pelo ocorrido: aquela construção tão bela e cara que agora não passava de destroços.


E que rosto! Suspirou pelo cansaço, porém era estranho que não se sentia cansado! Foi coisa de momento, de segundos.
Estava com vergonha, seu estado era lamentável. Não sabia qual seria o tamanho de suas olheiras, sentia os olhos pesarem. O cabelo estava um tanto sujo, já oleoso.
Mas também não poderia deixar passar aquela chance, precisava saber o que acontecera e onde estava, queria sua casa, seu cachorro e seus pais, não se lembrava deles, mas sabia que devia ter.
Chegou mais perto, a menina parecia estar atenta olhando para aquele lugar onde ele despertara e escrevendo algo num pequeno caderno. Não notou sua presença.
E assim ele se aproximou, mexia no cabelo para tentar deixa-lo um pouco apresentável, bateu na roupa para sair o pó. Por fim, chegou-se a ela e perguntou:
- Desculpe-me chegar assim, não tenha medo não! Eu estava ali, bem ali para onde você tanto olha e creio que deve saber algo sobre aquele lugar, acordei ali e de nada lembro. Poderia me ajudar?
Ela continuou escrevendo. Não deu importância ao que dizia o menino que também aparentava ser um moço, porém um tanto maltratado.
- Não quer me ajudar? – Perguntou receoso de qualquer reação da menina.
- Não posso. – Respondeu ela.
- Por que não? – Ele sorriu, tentando obter algo em troca. Mas tudo o que viu, foram lágrimas que brotavam dos olhos chorosos da garota. Ela levantou-se andando apressadamente, sem perceber deixou cair o caderno. O menino apanhou-o vendo seu nome, Lívia. Sentiu-se estranho e logo gritou por ela para que voltasse e pegasse seu caderno, mas a moça continuava subindo a rua. Ele correu, tentou alcançá-la, então a viu entrando em um portão.
Subiu andando até lá e apertou o botão da campainha, mas parecia estar enguiçado, pois não afundava e não funcionava. Chamou-a pelo nome e nenhuma resposta veio em troca.
Sentou-se então na frente do portão e abriu na página onde a bela moça escrevia há poucos minutos.

Vejo as cinzas que te levaram de mim
Oh inferno, oh eu estou aqui!
E talvez para o paraíso você há de ir
Meu pequeno, meus olhos já não o vêem mais.
O que há de ser agora?
O que mais podem tirar dessa pobre alma?
Já não posso seguir sem ti
Não posso...
Não, não posso mais!

Achou aquilo muito estranho! Folheou o caderno e então teve a resposta que procurava, já estava desconfiado...
Uma foto de si, onde atrás dizia:

Meu principezinho, meu Davizinho.

Eu posso te sentir, mas tenho medo, medo de te perder em outra vida.
Você é a luz que mora em mim, e nunca vai se apagar. Mesmo que eu nunca mais o veja!
Sempre serei a sua estrela
A estrela de Davi!

Seus olhos lacrimejaram, deste que acordou nunca houve vida ali, estava morto!


Do sofá, podia ver na estante um porta-retrato que a fazia chorar. Lívia e Davi, os olhos radiantes de felicidade de ambos. Agora é só uma recordação de uma saudade que não se pode mais matar.
Na praça, sentira algo estranho, uma dor no peito e seu corpo todo estremeceu. Ela acreditou que poderia ser aquele que tanto amava. Queria ter ficado, mas só sofreria, não podia vê-lo, nem toca-lo e muito menos escutá-lo.
- Não posso! – Ela gritou ao nada, para que, de onde estivesse ele pudesse entendê-la.
De repente, sentiu-se sendo tomada por um ódio sem tamanho! Ódio da vida, do destino e de todos que tinham vida enquanto o mais importante estava morto.
Seguiu andando até o quarto do pai, abriu a última gaveta do criado-mudo e retirou um embrulho.
Abriu o portão da casa e pôs-se a descer a rua solitária. O moço pálido e machucado andava atrás dela sem ver o que levava nas mãos.
Ela chegou à praça, ainda faltava muito para o local arruinado, mas não ligava para o tempo, seguiu andando normalmente.


Agora, já não sabia o que poderia acontecer consigo. Ninguém poderia vê-lo, vagaria eternamente? Assim é quando se morre?
Pegou o lápis que estava dentro do caderno e escreveu na próxima página em branco:

Graças a isto, posso me lembrar quem sou. Não sei se deixarão que você leia o que escrevo, já que não pode me ver e nem ouvir. Ah minha menina! Não quero te ver assim, chorando por mim! Eu estarei sempre contigo... Viva por você e pelo que eu não posso mais viver. Se você não continuar, não poderei mais te encontrar, uma vez que não encontrei ninguém como eu! Viva, por mim! E todas as noites que eu puder, estarei ali, olhando por ti. Talvez agora seja esta a minha missão, talvez por isso eu não possa ver outros como eu... Acho que a única pessoa que posso ver é você. Creio agora que minha missão é te proteger, serei para ti como um anjo e te guardarei para sempre. Nada de mal acontecerá contigo, minha Lívia!

Amo-te estrelinha, seu Davi!

Chegou ao grande espaço trágico. O vento estava forte e a poeira a fazia tossir. Desembrulhou do pano branco o revólver do pai.
Ela sentou-se no chão imundo e levantou a arma na altura da cabeça, engatilhou... E logo sentiu um peso sendo jogado em seu colo.


Davi a seguiu, sempre atrás, até lá. Quando a viu desembrulhar o objeto, chorou.
Ela se sentou e ajeitou a arma...
Ele devia impedir aquilo, sabia que não podia, mas com toda sua força e fé conseguiu jogar o caderno no colo da moça.


Ela não viu de onde viera. Olhou ao seu redor e não avistou ninguém.
O caderno caiu aberto... Ela percebeu algo que não tinha escrito.
As letras estavam tão apagadas que mal podia ler, só conseguia ver nitidamente as seguintes partes:

Viva, por mim! E todas as noites que eu puder, estarei ali, olhando por ti
minha missão é te proteger, serei para ti como um anjo
Amo-te estrelinha, seu Davi!

Ela sabia que tinha muito mais, porém era impossível ler, e estava escurecendo.
Envolveu a arma no pano branco, depositou um beijo naquela página.
Um sorriso abriu-se em seus lábios.
- Vamos meu amor? – Ela disse...
- Aonde você for! – Ele sussurrou.
Lado a lado voltaram a casa dela, a partir daquela noite, ela sabia que nunca mais dormiria só.

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